Re(A)cordar

            Era uma casa simples, um terraço, dois quartos, uma sala  ampla, uma cozinha e um banheiro grande. Nos fundos tinha um quintal bonito, com uma figueira que dava frutos brancos, portugueses. Na lateral uma parreira carregada de uvas rosadas e pretas, que se confundiam com as flores brancas, bem miúdas, do sabugueiro, que enfeitava a paisagem e cobria quase todo o terraço.
          No jardim muitas plantas, flores e uma árvore central onde eu colocava um cabo de vassoura, com um microfone de latinha de massa de tomates, que eu usava para cantar, apresentar meus programas favoritos e imitar o Ronald Golias.
         Meu avô Antônio estava sempre muito bem vestido, usava gravata e calça social com suspensórios. A tarde, sentava-se em sua cadeira grande, feita de vime, e contava suas fantásticas histórias.
         Eu ficava bem pertinho dele, escutando com atenção frase por frase. Ele parecia um contador de fábulas dos filmes infantis.
         Sendo  a moleca da rua, eu brincava de boneca e bola. Quando ouvia o tilintar da campainha do algodão doceiro (era assim que, particularmente, chamava o ilustre vendedor de algodão doce), saia correndo e ia ao seu encontro. Adorava ver aquela roda girando e os fios, um a um se juntando, para ter em minhas mãos aquele  punhado branco, que parecia uma nuvem caída do céu.
      Sorrindo eu sentava ao lado do seo Antônio e ia saboreando pedacinho por pedacinho da relíquia que segurava. Ao final de cada estória, com o rosto todo melado, não sabia dizer o que era mais gostoso: o algodão doce ou a doce voz de meu avô.
        “Quem bem faz a cama, bem se deita nela”, vovô repetia com frequência. Na pureza dos meus seis anos, ao deitar esticava bem o lençol para dormir. Hoje, entendo perfeitamente a frase e faço o maior esforço para segui-la rigorosamente, arrumando, com cuidado, os lençóis de minha vida.
            Ao me preparar para a primeira comunhão, fiquei preocupada em entender o que era pecado. Ele logo se prontificou a me responder:
         - "Deus tem um caderno para cada pessoa e um lápis bem grande e escreve tudo o que você faz. Você xingou sua mãe. Ele vai lá e anota direitinho. Mas, depois aparece o arrependimento, você pede desculpas para a mamãe. Então, Deus pega a borracha e apaga. O lápis de Deus é grande, mas a borracha é muito maior"

         Ensinou-me várias orações, uma delas foi o Padre Nosso Pequenino, que até hoje não encontrei alguém que soubesse inteiro. Era mais ou menos assim: “Padre nosso pequenino  quando Deus era menino, põe o pé em seu altar, missa nova quer cantar. Santo Antonio é seu padrinho, dê a sua mão direita, para fazer uma cruz bem feita. Cruz em monte, cruz em fronte e nem o diabo comigo se encontre. Nem de noite, nem de dia, pai nosso ave Maria.... os galos pretos cantam, os anjos se alevantam, vem divino o Menino Jesus”. Com certeza, muito de minha religiosidade foi herança de meu velho.
            Às 17 horas o ônibus da escola me deixava em casa, e eu, toda suja e amarrotada, corria ao encontro de meu avô. Ele logo perguntava como tinha sido o meu dia e se eu trazia alguma nova medalha. Medalha? Era o apelido carinhoso que recebia meus joelhos esfolados ou um arranhão no rosto. Mas, apesar de bagunceira, meu avô sempre ensinou a cumprimentar a todos, pedir por favor e nunca esquecer de dizer obrigada.
            Ele era um companheirão. Ás vezes o velho sábio, ás vezes tão criança como eu. Gostava de doce e sorvete (chamado na década de setenta de tijolo). Lembro, com saudade que foi a última coisa que saboreamos juntos.
         Nunca reprimiu, sempre aconselhou. Assistíamos juntos os Três Patetas e ríamos como ninguém. Ouvíamos os fados, além de Carlos Galhardo, Nelson Gonçalves e o então, iniciante, Aguinaldo Rayol.
         Com meus sete anos de idade, assisti aos festivais de música popular ao seu lado e sabia de cor as canções de Edu Lobo e Chico Buarque.
       Sempre chegava alguém em casa querendo falar com o seo Antônio. Era uma receita de chá, um conselho, um conserto no relógio ou um pouco do liquido precioso, do vidrinho preto, que ele mesmo criou para a cura do parasita. Quando meu avô fazia o seu preparado especial todo mundo reclamava do cheiro forte, menos eu, afinal adorava suas peripécias. Ah! Se o problema era sarampo, claro que para curar, somente chá de sabugueiro.
            Meu avô tinha um diário onde escrevia tudo. Os presentes que ganhava, as discussões, as alegrias e tristezas. Ele me prometeu esse caderno de capa dura, no qual estavam todos os seus segredos. O caderno desapareceu, mas as marcas ficaram comigo.
           Atrás da porta da cozinha tinha uma peça de bacalhau. Em seu momento para relaxar tirava uma lasca  para saborear acompanhando uma bebida. Cerveja? Só sem espuma. E depois de dois copos já ficava bem alegrinho e dizia: “minha vida bem contada é um romance” (A fraqueza para bebida, também herdei de meu avô).  Eu escutava atentamente tudo o que ele dizia. Hoje, depois de tantos anos lembro apenas de frases jogadas, meio sem sentido, que não sei dar continuidade. Ás vezes penso que perdi a chance de escrever um verdadeiro best-seller. 
            Vovô tinha algumas coleções preciosas de  moedas, cédulas e relógios. Uma cristaleira na qual guardava todas as suas raridades, além dos vinhos e azeite. A chave? Só eu sabia onde estava.
            Ele era meu cúmplice. Gostava de ver meu rosto todo coberto de pó-de-arroz de minha tia Bel, que ao chegar em casa chorava com o sujeira que eu havia feito em sua gaveta de maquiagens. Sem contar, também, com o desespero de minha mãe, que ao tentar usar seus sapatos de saltos altos, percebia que estavam todos tortos, porque eu resolvia passear com eles a tarde toda, e só vovô é quem sabia.
           Nós tínhamos códigos secretos. Quando meu tio Neco parava o Chevrolet preto, brilhante, na porta de casa e ia nos ver, vovô corria para me avisar. Depois de um beijo e um abraço especial no meu tio, eu ia dirigir aquele tremendo carrão que me encantava. Na hora da despedida morríamos de rir ao ver meu tio apressado, com a flanela na mão, tentando, impacientemente, apagar minhas digitais que ficaram marcadas suavemente em toda lataria.
            Eu estudava em um tradicional colégio de freias da capital de São Paulo. Todas as sextas-feiras trazia uma caixa de madeira, com a imagem de um santo, para ficar em casa no final de semana. Meu avô gostava do fato e brincando dizia: “deixa ele aí, afinal não come, não bebe, não dá trabalho”. Essa frase, repetida para a irmã Rosa, quase me causou uma suspensão na escola.  Hoje tenho muitas imagens em casa, e concordo com ele ..não come, não bebe, não dá trabalho, mas protege.
            Quando meu avô foi embora de minha vida eu ia completar 10 anos. A última frase dele foi: "não esqueça de preparar o aniversário da menina". Sofri muito. Perdi suas histórias, sua sabedoria e seu encantamento. Mas a sua verdade ficou marcada na minha memória e na minha vida.
            Gosto ainda do gosto do algodão doce,  mesmo sendo empacotado e vendido em diversas cores. Mantenho o hábito de cumprimentar o motorista e o cobrador de ônibus, peço sempre por favor e ainda acredito na importância da palavra obrigada. A TV não passa mais os Três Patetas...
            Depois de muitos anos, voltei a rua em que eu morava. Uma emoção estranha e forte tomou conta de mim. Pedi licença ao proprietário e entrei. Não havia mais a figueira, o sabugueiro e a parreira.  A árvore central estava lá, mas não tão bonita quanto antes. A casa parecia menor. Senti saudades de meu avô... ele se foi. O terraço da frente não tinha o mesmo brilho dos seus olhos verdes. E nem a grande imagem de Santo Antônio, que hoje emoldura o seu túmulo.
            Fiquei sem seu caderno secreto, sem a receita contra o parasita, sem suas moedas e cédulas. Mas permaneceram comigo os seus conselhos, seu bom humor e sua doçura. E a certeza de ter tido um avô muito bonito, muito querido. Por esse motivo, hoje escrevo no meu  diário sobre ele, para que todos possam conhecer o senhor Antônio de Carvalho, o Sábio, que partiu em 31 de julho de 1968.
       Com certeza ele está ao lado de Deus, ensinando aos anjos seus remédios milagrosos, consertando os relógios do céu e avisando São Pedro como fazer para regar melhor as plantas.


* vô Antônio comigo no colo 

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