Certeza

            O cheiro do mofo vinha de todos os lados. Havia muito pó naquelas estantes que pesavam sobre o chão, com tanta cultura acumulada. O som do silêncio se fazia ouvir por todo ambiente.
            Ela entra, segura e soberana, andando por entre meios e buracos, procurando o saber. Remexia em todos os volumes desejando encontrar. Já começo a achar que o meu jornal não é tão interessante.

            Qual autor dará a experiência, a fórmula mágica, para que o problema seja resolvido? Sim! Só pode ser um problema. E sinto que busca uma resposta por esses caminhos tão tortuosos. Começo a 'voar'... eu poderia resolver num segundo todas as inquietações.

            Os passos dela vão marcando o som do saltinho que chega mansamente batendo em meus ouvidos. Em cada passada, por uma ou outra divisão, posso vê-la. O seu olhar parece cruzar sempre com o meu.

            O que eu poderia fazer para entrar em sua vida? Como consentir que essa mulher tão bela possa estar tão ansiosa, tão preocupada, tão carente? O que ela procura, Senhor?
            O salto continua batendo cadenciadamente nesse assoalho tão pisado. Deixando falar meu lado masoquista, penso: " Por que ela não pisa assim sobre o meu corpo?".
            Acho que estou apaixonado! Perdidamente . Há três meses persigo essa mulher como um alucinado, e agora, está na mesma biblioteca e eu não tenho coragem de abordá-la.

            Nossa! Hoje estou infernal. Lembrei daquela música da Jovem Guarda "eu queria ser o seu caderninho, prá poder ficar juntinho de você..." Triste! Sei que fui longe demais em meus delírios. Acho que atingi o último grau na escala dos loucos.

            E ela continua sua pesquisa. Agora, parece que encontrou. O livro tem capa vermelha...a saia dela também. A blusa e as folhas são bege ou creme, os tons são parecidos. Ela mexe em cada página... Penso em segurar minhas mãos para não tocá-la e deixar passar o meu louco desejo.

            Preciso achar uma saída. Talvez a astrologia me responda. Ela deve ser de leão. Ao entrar, parecia um raio de sol invadindo o ambiente. Todos percebem sua pose de majestade, principalmente ao tocar, delicadamente, com as mãos, seus cabelos de tons avermelhados. Talvez aquariana, sinto algo renovador em seus gestos. Gente! Estou doido!

           Lá vem ela, do fundo da sala. Tá!Tum!Tá!Tum faz o salto do sapato. Senta-se na minha frente, coloca os óculos de gata e começa a ler atentamente.

          Deve ser pesquisadora da USP. Talvez professora. Já sei, faz parte daquele partido 'esquerdoso', deve estar lendo Marx. "O ser social determina a consciência,  ele já dizia.

        Faço um esforço para conseguir ver o título do livro. Quero descobrir "seu segredo, seu mistério, seu bruxedo" ou, ao menos, seu telefone.

          Ela tira do bolso uma cigarreira de couro marrom. Faz cara de decepcionada ao ler a mensagem no cartaz da direita "é proibido fumar". Levanta...Logo vou saber o que está lendo. Ela vai deixar o livro na mesa, claro.

     Lamentável engano. Ela é chata mesmo. Perfeccionista, deve ser virginiana. Fala com a recepcionista, deixa um documento e sai da sala para fumar... E leva o livro. E se não voltar? Droga!

          Longo é o tempo que estou aqui. Já li e reli esse jornal com informações tão banais. Voltou. Ela voltou. Me olha de um jeito misterioso. Acho que é de escorpião. Essa mulher me agride com sua graça constante.
         Não aguento mais. Preciso saber o que está lendo. Preciso conhecê-la. Venço todas as minhas barreiras e timidamente pergunto:
            - Desculpe, mas estou muito curioso. O que você procura aqui, com tanta ansiedade?
            A resposta vem com uma doce apunhalada:
            - Você.



Texto publicado em 1993, no livro Essências Literárias, antologia poética, Litteris Editora.


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