Real(idade)



            Depois de mais ou menos uns 35 minutos chegou o ônibus abarrotado. As pessoas se comprimiam para conseguir entrar. O serviço... O relógio de ponto... A consulta... A aula... O compromisso... É preciso entrar. Não, não é preciso, é necessário.
Fico de lado, deixo que todos passem, não tenho pressa. Quem me espera não se apressa, mesmo ansioso, sabe que vou chegar.
Aquela massa humana invade o coletivo e nessa hora o importante é entrar. Conseguir um lugar para ao menos colocar os pés. Mesmo esmagados, hão de chegar...  O serviço... O relógio de ponto... A consulta... A aula... O compromisso... É preciso entrar. Não, não é preciso, é necessário.
Um minuto depois surge outro ônibus, inteiramente vazio. Entro, sento no terceiro banco, do lado esquerdo, na janelinha. Atrás de mim, um jovem com material de arquitetura. O um garoto faz um batuque irritante com uma moedinha de dez centavos.
Mais um ponto. Entram três adolescentes rindo, rindo muito, entusiasmadas com o primeiro baile na casa de uma amiga. E assim vão sendo ocupados todos os lugares.  Todos com uma história, um segredo.
Na minha frente, senta um senhor de aproximadamente 75 anos. Com uma calça escura, uma blusa verde e um chapéu tipo Panamá.  O ônibus vai seguindo seu percurso. O barulho irritante da moedinha continua. Alguém reclama do troco. Confusão. Bate-boca.
De repente, em frente ao cemitério, o vovô do banco da frente coloca a mão no chapéu, e o tira da cabeça, fazendo uma reverência e uma breve oração. Mais adiante uma Igreja, e outra vez, o mesmo gesto carinhoso do vovô.
Fiquei curiosa e, movida por um desejo estranho, levantei e sentei ao seu lado. Com a sabedoria de quem chegou a ter a cabeça inteira grisalha, perguntou:
-          Estranhou o meu gesto?
Num segundo fiquei sem graça, mas respondi que as pessoas faziam o sinal da cruz,
muito rápido, com vergonha, quando passavam em frente ao cemitério ou uma Igreja. Ele fazia tudo com muita espontaneidade, muito respeito, por isso reparei. Parecia estar alheio a tudo, mas com atenção voltada para o mundo.
-          Quando estou no ônibus – explicou - não me incomodo se corre ou vai devagar. Olho cada rua, cada casa, cada rosto, como se fossemos velhos amigos. Está vendo aquele prédio? Mudaram o portão, antes era de madeira, agora colocaram um de inox. Quanto as minhas orações, fique certa de que não passa de um cumprimento particular. Nos dois lugares tenho amigos.
Uma freada brusca. Todos reclamam. O bom velho apenas olha e diz:
-          Estão anestesiados, talvez este solavanco faça com que voltem a pensar. Você
Parece muito feliz. Aonde vai? Perguntou.
            Em tom de brincadeira, respondi:
-          Vou encontrar meu príncipe.
-          Que não tem cavalo branco, suponho, e que nem tão pouco vive falando apenas
versos de amor em seu ouvido. Mas que tem os pés no chão e muito amor para oferecer, argumentou ele.
            Sorri num aceno de cabeça, concordando com ele. Fiquei olhando com admiração, cuidado. Zelo. Olhar de amor. O ônibus para, entra um homem totalmente embriagado, falando alto e joga-se em um banco. Começa a reclamar contra os donos do poder. Diz que vai fundar o PBL – Partido dos Bêbados Liberais. As pessoas se entreolham com indignação, compaixão, outras riem. O jovem arquiteto presta muita atenção, quer aprender.
-          Sabe menina, diz o velho, este jovem já sofreu muito. Ele não teve oportunidade
de ser. Ninguém lhe estendeu a mão. Todos fogem. Só o medo, a desconfiança e oportunismo foi o que ele encontrou. Não tem família, não tem amigos e nunca, na vida, alguém o chamou de príncipe. Você hoje conversa comigo, presta atenção a cada palavra. Eu aprendo com os jovens e você com os velhos. Aprendo com seu olhar. Agora vou descer. Vou para casa, pois amanhã faz 50 anos que me casei. Meus netos estão preparando uma linda festa de Bodas de Ouro. Minha princesa vai estar de vestido azul e eu de terno da mesma cor. Desejo de coração que isto um dia aconteça com você.  Tome meu endereço, espero você e seu príncipe, juntos, nesta comemoração.
O bom velho se levantou, mas eu queria que ele continuasse comigo e talvez para
detê-lo disse:
-          Ei, qual o seu nome?
O bom velho me olhou profundamente e desceu.
Fiquei alguns segundos sem saber o que pensar ou fazer. Os meus olhos voltaram-
se ao papel, onde o recado vinha em forma de oração:

NOME: JOSÉ DO AMOR
RUA: A DA FELICIDADE S/Nº
(OBS.: É  fácil encontrar minha casa. Ela é linda e simples. Lá você sempre terá o sorriso da paz).
            Penso no príncipe. No próximo ponto eu desço. Já vejo o seu sorriso. Volto à real(idade).
           

                                                     
           


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